Os desafios programáticos e estratégicos da esquerda brasileira
Introdução retrospectiva
Quando esse texto foi escrito o segundo governo Dilma tinha acabado de começar. Em abril de 2015 estávamos apreensivos diante da ofensiva da direita e diante do recuo do governo em relação ao programa político recém-aprovado nas urnas.
A conjuntura continuava muito aquecida e tensa. Ainda vivíamos o clima de um acirrado processo de campanha eleitoral que, com todas as dificuldades, unificou toda a esquerda em 2014.
Naquele momento, muitos da esquerda ainda assistiam com um certo descaso as expressões do fascismo que surgiam nas manifestações contra o governo Dilma. Mas, também naquele momento já era possível perceber o que estava por vir.
Foi nesse contexto histórico, portanto antes do golpe de 2016, que as analises apresentadas no texto que segue foram desenvolvidas. Muita coisa mudou de lá pra cá, mas os problemas analisados permanecem atuais.
Depois de 5 anos, as conclusões apontadas em relação aos desafios da esquerda ainda persistem e continuam presentes na pauta de discussão sobre o que fazer? Segue o texto!
29 de maio de 2020.
É momento de se preparar
Se preparar para uma situação que tende a piorar. E não se trata de pessimismo, derrotismo ou desespero, mas de estar atento aos desdobramentos da atual conjuntura e perceber que é preciso começar reunir força e forjar resistência para os desafios turbulentos que estão pela frente.
Mas, por que a situação poderia ficar ainda pior? Três aspectos são muito importantes a serem considerados nas atuais análises de conjuntura.
Economia
O primeiro aspecto é o econômico. Pois, por mais equilíbrio fiscal que o governo produza ele não será suficiente para gerar um saldo financeiro capaz de continuar, em escala, os benefícios sociais e as melhorias materiais que a classe trabalhadora e a população esperam.
Ou seja, mesmo com todo esforço e desgaste político para aplicação do ajuste fiscal continuaremos na defensiva e perdendo apoio.
Para continuar os progressos na melhoria da vida do povo é necessário crescimento econômico, ou seja, geração de riqueza que garanta maior arrecadação para o Estado e, por sua vez, a possibilidade de ampliar investimentos sociais.
O problema é que crescimento econômico não é produto apenas do manejo das políticas macroeconômicas (câmbio, juros, equilíbrio fiscal), mas de uma política industrial, que é a principal iniciativa econômica geradora de valor e riqueza em um país.
Portanto, a alternativa para gerar não só crescimento, mas desenvolvimento econômico sustentável é uma política industrial. Política essa, que tenha como objetivo adensar nossa cadeia produtiva, diminuindo nossa dependência tecnológica de máquinas-ferramentas para a produção de equipamentos.
A nossa indústria precisa deixar de ser apenas montadora de bens de consumo e passar a ser uma indústria produtora de bens de capital.[1]
Contudo, mesmo que o governo adotasse agora uma agressiva política industrial, só se poderia colher resultados dela no médio prazo.
Logo, a política industrial é uma medida estratégica, fundamental para garantir desenvolvimento econômico e deve ser adotada com urgência, mas não é eficaz para enfrentar as exigências de curto prazo da atual dinâmica política que exige resultados econômicos quase que imediatos.
Assim, outra forma de garantir saldo financeiro no Estado para investimentos em políticas sociais, que continuem a diminuir a desigualdade e a ampliar as condições materiais dos trabalhadores, seria uma reforma tributária.
Desde 2003, os governos Lula/Dilma distribuíram renda manejando investimentos em programas sociais e aumentando a massa salarial, mas a matriz tributária do país continua injusta.
Os mais pobres pagando mais e os mais ricos pagando menos. Uma reforma que tributasse o rentismo (especulação financeira), o patrimônio e fosse progressiva na renda, garantiria recursos em saldo suficiente (de forma justa socialmente) para continuar ampliando a melhoria da vida do povo.
O problema é que na atual conjuntura a correlação de forças está muito desfavorável e perdemos a governabilidade no congresso nacional. A não ser que essa correlação mude a partir de muita pressão social e, ao mesmo tempo, o governo esteja convicto de empreender essa reforma, a situação econômica tende a ficar estagnada ou a piorar.
Sociedade e Cultura
O segundo aspecto importante é o sócio-cultural. Nos últimos anos nossos governos produziram uma mobilidade social nunca vista em nosso país. Foram milhões de pessoas e as classes trabalhadoras que tiveram melhora nas condições materiais de vida e, em especial, na capacidade de consumo.
Entretanto, essas mudanças não vieram acompanhadas de uma consciência social, ao contrário, acabaram por reforçar a lógica do individualismo, da competição, do imediatismo e do consumismo.
O fato, é que ao se melhorar as condições objetivas (materiais) sem alterar as condições subjetivas (consciência de classe), ou seja, sem disputar o imaginário de valores; sem reformar o conteúdo e o método das instituições culturais (principalmente a escola e os meios de comunicação), que reproduzem cotidianamente a retórica individualista e os valores liberais, se confirmará para a maioria da população a crença de que as melhorias foram produto do esforço e do mérito individual.
Por isso, hoje, é baixa a percepção de que as melhorias foram resultado da mudança de prioridades de investimentos do Estado, que permitiu a ampliação das oportunidades de trabalho e a valorização dos salários.
Associado a essa baixa percepção de mudanças, outros processos socio-culturais contribuíram para reforçar a crença no individualismo.
Basta observar o crescimento das igrejas, especialmente das evangélicas, que pregam de forma mais contundente a “ética protestante e o espírito do capitalismo”. E, sobretudo, a difusão da ideia de que bem-estar é capacidade de consumo individual, é ser de classe média.
Aliás, são processos culturalmente tão fortes, que muitos de nós passamos a considerar os segmentos das classes populares, que ascenderam socialmente e de certa forma ingressaram na classe trabalhadora, como a “nova classe média” e, até mesmo, a acreditar que ser um país de classe média seria um bom propósito para a nação.[2]
Nesse ambiente social, qualquer luta política emancipatória encontrará enormes dificuldades, dado que a ausência de uma disputa cultural com outros valores sociais favoreceu o crescimento da lógica liberal e do senso comum conservador.
Por óbvio, as organizações coletivas se enfraqueceram. Os sindicatos, ainda não conseguiram sindicalizar o imenso contingente de novos trabalhadores e enfrentam um crescimento das desfiliações. Os movimentos sociais, também, vivenciam uma extrema dificuldade em agregar gente.
Por consequência, a política como instrumento de conquistas coletivas se desvaloriza ainda mais, e prevalece para a maioria das pessoas que a saída para os problemas são as soluções individuais. Até as manifestações, principalmente as conservadoras, tem carregado uma perspectiva individualista de organização e expressão.
Política
O terceiro aspecto é o político. De maneira contraditória a situação de negação da política evoluiu para a de mobilização política. Parece que os setores conservadores mudaram de tática.
Há pouco tempo, o comportamento geral era o distanciamento da política, em parte por considerar algo “sujo” ou uma “atividade de aproveitadores”, em parte por achar “desnecessário” ou “perda de tempo”.
Mas, depois das manifestações de junho de 2013 (que não foi um movimento da direita, embora ela tenha disputado sua narrativa e rumos) a direita passou a apostar em mobilização política. Desde então, pode-se assistir, de diferentes formas e proporções as ações de mobilização que passam pelas redes sociais, pelas coberturas midiáticas, pela ação parlamentar e pelas ações de rua.
Por outro lado, setores majoritários da esquerda, em parte pelo “governismo”, em parte pelo “enferrujamento” na atuação social e, sobretudo, por causa da tática de conciliação de classes, reagiram mal a essa “postura” de enfrentamento da direita.
Ficaram confusos e não estão sabendo agir. Isto revela o que muitos da esquerda não querem enxergar, a tática de conciliatória se esgotou. Por isso, a direita e até mesmo os “achacadores” não querem mais conversa, muito menos acordo ou qualquer pacto.
Cada vez mais, está claro que os conservadores vão intensificar sua ação política em campo aberto.
Mas o problema no aspecto politico não é somente a tática. A estratégia também se esgotou, pois estava baseada somente em chegar ao governo central e administrá-lo sem uma agenda de reformas estruturais que, também, implicaria numa outra lógica de governabilidade.
Sendo assim, uma estratégia que privilegiou a ação institucional, subestimou a ação de luta social e abandonou a ação partidária gerou diversas consequências danosas:
a) resumiu o acúmulo de força às disputas eleitorais e pior, uma parte da esquerda, além de incorporar a lógica de campanha da direita, passou a valorizar a obtenção de cargos e financiamento empresarial;
b) estabeleceu o governo como o centro da elaboração e decisão política, o que esvaziou a capacidade de formulação dos partidos e simultaneamente fez os dirigentes adotarem as premissas da instituição Governo/Estado na atuação política;
c) governou apenas administrando, não indo nada além, não empreendendo mudanças, nem mesmo na institucionalidade (reforma do Estado) e, é claro, não atuou para fazer reformas.
Então, aquilo que uma grande parte da esquerda não acreditava, ou seja, que a estratégia era capenga, a própria conjuntura, de forma ainda mais nítida, se encarregou de revelar: sem ação na luta social e sem ação partidária passamos a sentir na pele o que é a dificuldade de enfrentar a direita com os movimentos sociais frágeis, o partido desorganizado e a esquerda social e política dividida.
O programa é outro problema do aspecto político. Além da crescente subordinação do programa a tática, que produz um constante rebaixamento das ideias e propostas, é preciso considerar que a esquerda tem vivido uma crise programática e isso repercute na capacidade de responder às mudanças culturais, sociais e econômicas que vem ocorrendo no Brasil e no mundo.
Embora as reformas estruturais continuem sendo o principal conteúdo para a disputa da atual conjuntura no Brasil, um conjunto de novos problemas e questões vem se colocando como temas organizadores de novos movimentos sociais e iniciativas políticas. Dentre essas novas questões cabe destacar:
a) a questão urbana com suas variáveis (mobilidade, ocupação do espaço público, habitação e etc.);
b) a questão geracional;
c) a questão da cultura digital/comunicação.
Três questões que pelo impacto em diversas dimensões da vida social se tornaram “estratégicas” e, por isso, a esquerda precisa refletir mais profundamente e formular sobre elas.
Por último, no aspecto político, é importante destacar o problema do comportamento, da prática política. Pois, uma parte da esquerda adotou o modus operandi da direita, ou seja, passou a reproduzir a forma de fazer política dos conservadores.
Seja porque a atuação se reduziu a mera luta por espaço na institucionalidade e isso ocorreu até mesmo nas organizações sociais como sindicatos, movimentos e associações.
Seja porque absorveu a lógica liberal ou “empresarial” de encarar a política.
Seja porque tem diminuído a disposição para a construção de sínteses coletivas, privilegiando por um lado o personalismo autoritário e por outro estimulando o comportamento de torcida organizada dos militantes.
Enfim, seja porque a ação de organização e de representação política perdeu a lógica democrática e se tornou “aparelhista”, instrumental e autocrática.
Ademais, é importante notar que parte dessa mudança da prática política decorre de uma alteração na essência do raciocínio político. Alteração essa, que passa pela dissociação do discurso da prática.
Isto é, um desprezo do método/processo como se esse não determinasse os resultados políticos. Assim, os meios justificam sim os fins. Ao adotar os métodos e processos da direita, além de parte da esquerda se transformar em direita, isso produz uma crescente dinâmica de desconfiança das classes populares com a esquerda.
Portanto, ao se falar ou escrever uma coisa e fazer outra se constrói na realidade a deslegitimação não só das opiniões e concepções da esquerda, mas principalmente da possibilidade de representação política.
O “não me representa” é produto da nossa prática incoerente, nada democrática e não transparente.
Muito mais exigências
Considerando as dificuldades tanto no aspecto econômico quanto nos aspectos sócio-cultural e político, muito tem se discutido sobre o que fazer.
Nesta questão, alguns pontos estão claros. Como o de que uma boa parte da esquerda se tornou conservadora ou deixou de ser esquerda (capitulou) e por isso precisa: mudar e combater a degeneração da sua reflexão e de sua ação política.
Mais ainda, precisa deixar de ter medo, de sempre recorrer aos conchavos, de se acanhar no debate contra o senso comum.
Precisa retomar uma postura destemida e coerente com sua origem contestadora. Para isso, é necessário:
a) reencontrar suas convicções para desafiar o senso comum;
b) retomar o estudo da realidade brasileira e a formulação de propostas numa perspectiva transformadora e não conciliadora;
c) voltar a acreditar que os enfrentamentos são politizadores e quanto mais politização da sociedade mais possibilidade de mudança social.
É sempre bom lembrar que a conciliação e a ausência de uma ruptura social e institucional no Brasil é um traço da sua história que sempre limitou a possibilidade de um salto qualitativo na sociedade.
Romper com a conciliação, produzir uma ruptura social e institucional deveria ser o principal compromisso estratégico da esquerda no país, pois sem isso o desenvolvimento brasileiro sempre estará aquém das oportunidades e vantagens que o mundo acredita que temos.
Os desafios continuam imensos como sempre. Ao contrario de uma certa ilusão otimista e submissa de muitos.
Os sinais que a atual conjuntura vem apontando são de que a situação se agravará no próximo período. Então, é hora de realismo, porém esperançoso (como diria Ariano Suassuna) para enfrentar nossas fragilidades, preparar a resistência e organizar a reação. Tudo isso exigirá muito mais de nós, a esquerda social e política desse país.
José Ricardo Bianco Fonseca, é biólogo e filiado ao Partido dos Trabalhadores
*Publicado originalmente em 6 de abril de 2015 no sítio www.pagina13.org.br
[1] Sobre o tema política industrial são muito importantes os textos de Wladimir Pomar, em específico: 1) A questão industrial; 2) Desindustrialização, um debate; E, 3) A quem interessa industrializar.
[2] Sobre a questão da classe media vale a leitura do texto “ Felicidade não se encontra no supermercado” de Valter Pomar e o livro “ Nova Classe Média?” de Marcio Pochmann.